Em termos psicológicos, a descida às profundezas implica o descartar das imagens infantis do nosso passado pessoal. Trata-se, simultaneamente, de um despertar psicológico e de uma iniciação espiritual.O encontro com a sombra é sempre um processo iniciático. Não podemos levar a personagem conosco quando vamos ao encontro do Si Mesmo. O tema da morte egóica do viajante interior e da sua ressurreição espiritual permeia toda a história humana. No mais antigo relato de que há memória, e que nos vem da Suméria, Inanna, Rainha do Céu, efetua uma árdua viagem até ao mundo subterrâneo.
Em primeiro lugar, Inanna deixa a sua família e tudo o que é confortável e familiar. À medida que se aproxima dos sucessivos portões que conduzem ao mundo subterrâneo, vai abandonando um atributo precioso: o seu papel de rainha, o seu poder régio, o seu poder sexual, cada um deles simbolizado por um objecto, seja uma coroa, um colar, um adorno, um anel de ouro ou um manto real. Na sua nudez, sem os seus poderes, Inanna está tão desamparada como uma criança.
Por fim, Inanna encontra a sua irmã, Ereshkigal, rainha do mundo subterrâneo, que come barro, bebe água suja e não tem formas de se proteger da sua natureza instintiva. Ereshkigal é depositária de sentimentos primários – raiva, ambição, sofrimento – e, tal como a deusa hindu Kali, devora e destrói coisas, o que permite que novas coisas se possam gerar e nascer. Ao ver Inanna, fértil e bela, Ereshkigal fica cheia de inveja, transforma a irmã num cadáver e pendura-o numa parede, como se tivesse sido crucificado.
O encontro mitológico de Inanna com a sua irmã sombra, o seu alter-ego odiento, inspira terror e submissão. Inanna confronta-se com a indiferença, cheia de raiva daquele lado que, algures no nosso interior, se senta no trono e lida com a morte.
O encontro destes dois lados é um acontecimento arquetípico. Esse encontro equivale à morte do ego ideal. O encontro com a fera obriga-nos a pôr de lado orgulho, virtude e beleza. Ou engolimos o nosso oposto ou somos engolidos por ele. Neste processo alquímico, pode dar-se o nosso renascimento.
Se já efetuamos uma descida ao mundo subterrâneo, quem encontramos no fundo do abismo? Que forma assumiu o nosso desmembramento?
O que permitiu o nosso renascimento?
Com certeza,a vontade de viver.
Esse texto,eu dedico a minha mãe Lena,
que como Inanna,conheceu o mundo subterrâneo,
mas com enorme coragem e bravura,renasceu.
Te amo,mãe.
Te amo,Inanna.